Liga Africana e a contribuição para a independência

Fonte: Revista AUSTRAL, TAAG - Linhas Aéreas de Angola, Nº 121 - 2017
       Texto: Miguel Gomes  Fotografia: Carlos de Aguiar

A Liga Africana é uma instituição angolana de utilidade pública. Funciona em Luanda e quase toda a gente conhece o edifício cor- de-rosa, situado na rua homónima à instituição, a Rua da Liga Africana. Quem dá o nome a uma rua tão rica em memórias só pode ter uma longa história para contar.

A actual Liga Africana resiste de forma pomposa à mudança de contexto político e social. Nascida para motivar e dar guarida aos despojados do império colonial português, hoje está vocacionada para a actividade cultural e de memória histórica, com fortes raízes no que se pode chamar de nacionalismo angolano. 
Victor Fortes (Secretário-Geral) Carlos Mariano (Presidente)
David Martins (Secretário-Geral Adjunto)

Os povos africanos em geral, ao longo do período de colonização, foram dinamizando várias formas de luta, de resistência, umas vezes de forma contundente, outras vezes de forma dissimulada. 

As autoridades coloniais governavam com mão-de-ferro e desenharam diversos sistemas de controlo social. Desde a sua criação, a Liga Africana passou por diversas fases. Quase todas as mudanças que a organização enfrentou foram resultado do contexto e do tempo histórico.

Carlos Mariano é o actual Presidente da Liga Africana. Recebeu-nos na antiga sala de reuniões da instituição. Estamos sentados numa longa mesa de madeira antiga, enquanto a imagem de um dos predecessores de Carlos Mariano garante uma supervisão quase mítica.

É sob o olhar do malogrado João Vieira Lopes que decorre a conversa com o também professor titular em Medicina da Universidade Agostinho Neto.

"Antes do surgimento da Liga de Angola existiram outras organizações que congregavam africanos, em Lisboa (Portugal), sobretudo indivíduos de Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e São Tomé e Príncipe, que faziam os estudos superiores e liceais na antiga metrópole colonial. Em 1912, em Lisboa, foi criada a Junta de Defesa dos Direitos dos Africanos, uma organização que velava pelas aspirações dos africanos e que defendia a necessidade de também serem ouvidos pela administração colonial. Eram sinais de desagrado e de auto-defesa. Em 1919, a Junta de Defesa dos Direitos dos Africanos deu lugar, em Luanda, à criação da Liga de Angola, com o objectivo de encontrar novas formas de resistência à ocupação colonial portuguesa. A Liga de Angola foi extinta em 1921, por Portaria da autoria do Alto Comissário e Governador Geral de Angola, general José Norton de Matos", lembra Carlos Mariano.

O contexto na metrópole era algo convulso: a proclamação da República e a queda da monarquia tinham acontecido a 5 de Outubro de 1910, sucedendo-se um período de mudança e de alguma instabilidade política.

As organizações africanas sentiram que era altura de pressionar as autoridades portuguesas para que trouxessem dignidade aos povos colonizados - na defesa dos seus hábitos e crenças, das suas línguas, pelo acesso ao poder económico e político e pelo fim imediato da exploração, da escravatura e do trabalho forçado. O primeiro governador-geral republicano de Angola foi José Norton de Matos, entre 1912 e 1915, na altura ainda como major do exército português. Mais tarde, o mesmo Norton de Matos, agora como general, volta a ser nomeado para administrar Angola, desta vez com a designação de Alto-Comissário da República Portuguesa, entre Abril de 1921 e Junho de 1924.

Carlos Mariano, Presidente da Liga Africana
A segunda passagem do militar e político português por Angola ficou marcada pelo encerramento compulsivo de várias associações africanas, pela proibição dos jornais africanos - como o famoso "Angolense", por exemplo - e por complicar de forma decisiva os esforços para a valorização dos africanos. Foi uma época de passagem à subalternidade e de dissimulação das actividades políticas contra o colonialismo. A repressão foi violenta e vários nacionalistas foram detidos ou mesmo depor-tados ou ameaçados. 

A Liga de Angola tinha sido proibida por motivos políticos. O que sucedeu? 

"Em 1930, seis anos depois da saída de Norton de Matos de Angola, foi então criada a Liga Nacional Africana. A palavra 'nacional" deve ser entendida como uma referência a Portugal e não a Angola. Julgo que era, mais uma vez, uma eufemização, uma estratégia dos fundadores para fugir ao crivo e à censura das autoridades coloniais. Porque tudo o que fosse conotado com mensagens pró-independência corria o risco de ser reprimido", explica Carlos Mariano.

Também não é despiciendo o local onde estas movimentações acontecem. Já sabemos que a narrativa está dividida entre Lisboa, Portugal! e Luanda, nem que seja por motivos políticos, sendo que a capital do país conserva maior relevância de contestação ao regime colonial

Os anos de 1920-1930 marcaram ainda o início de uma alteração decisiva na forma como Portugal geriu a relação colonial - de território de degredados, de comércio, de exploração de mão-de-obra e de recursos naturais, Portugal passou a defender e a executar uma colonização de ocupação.

Foi a partir desta altura que a maioria dos portugueses veio para Angola. A população das maiores cidades também disparou em poucas décadas. Luanda é um dos melhores exemplos.

A nova estratégia portuguesa provocou sérias alterações sociais. Uma elite mestiça típica de Luanda, da baixa, dos Coqueiros e do Baleizão, que conservava alguma relevância política mas sobretudo comercial, começou a ser expropriada e afastada desta zona da cidade e dos centros de decisão.

Algumas destas famílias foram atiradas para a zona da Ingombota, do Maculusso e do Bairro Operário.
A movimentação de pessoas e a perda de relevâncias várias causou ódios, desesperos e raivas que desembocaram num caldeirão nacionalista e anti-fascista, instalado num triângulo bairrista que engloba as três zonas de Luanda referidas anteriormente'. A Rua da Liga Africana está situada no Maculusso, enquanto a primeira sede da instituição era na Ingombota.

Figuras míticas 

Na génese da Liga Africana estão pessoas ligadas a uma elite assimilada africana, que teve acesso a formação superior, em alguns casos, e que foi utilizando essa facilidade de movimentação entre duas realidades pouco conectadas para denunciar algumas práticas - eram pessoas que conheciam bem a realidade dos africanos e a realidade dos europeus que viviam em Angola.

Ngola Ritmos assumiu o Semba como ritmo nacional
angolano de afirmação da independência

Enquanto Liga Nacional Africana, após 1930, o primeiro presidente da organização foi António Assis Júnior, advogado, escritor e jornalista angolano, natural do Golungo Alto [actual Kwanza Norte].

"Assis Júnior foi uma figura insigne na defesa do interesse nacional, do ponto de vista cultural e intelectual. É o autor de um dos primeiros romances angolanos '0 Segredo da Morta', que cataloga e te matiza os costumes locais. A escrita, tanto em forma de poesia, prosa ou crónicas jornalísticas, era uma forma inteligente e subtil de resistir à devastação cultural, exaltando as práticas culturais angolanas", explica Carlos Mariano em conversa com a Austral. Assis Júnior foi fundador do jornal "Angolense", entre outras publicações periódicas. Chegou a publicar o "Relato dos Acontecimentos Ocorridos em Lukala e Ndalatando", na actual província do Kwanza Norte. A publicação retrata uma sublevação de camponeses fortemente reprimida pela administração portuguesa. Como advogado, defendeu diversos africanos sem recursos, sobretudo em casos de esbulho de terras, uma das consequências mais evidentes do projecto colonial. As suas actividades de cariz político renderam-lhe a expulsão do país. Foi exilado com residência fixa em Portugal, onde chegou depois a dar aulas na Escola Superior Colonial e a publicar uma gramática de kimbundu.

Nesta altura, a Liga Nacional Africana desenvolvia várias actividades, desde os cursos de artes e ofícios, a iniciativas ligadas às artes cénicas e até a programas de assistência social aos associados. Chegou a registar mais de 20 mil associados, de todo o país, e a implementar uma caixa mutualista [quase um predecessor dos programas de micro-crédito ou de crédito informal!, segundo garantem os actuais corpos dirigentes da Liga Africana. Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola, Liceu Vieira Dias [fundador da música moderna angolanal. Lopo do Nascimento, Adriano Mendes de Carvalho "Uanhenqa Xito", Jaime Araújo, Domingos Coelho da Cruz, Alexandre Monteiro, Germano Gomes, Diógenes Boavida ou a família Pinto de Andrade eram frequentadores e, em diversos casos, chegaram a ser membros efectivos da direcção da Liga Nacional Africana.
Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola, foi
um dos membros efectivos da Liga Africana  

Mais recentemente, sobretudo após 1996, Jaime Araújo assumiu-se como uma figura de grande dinamismo e fervor à volta da instituição e da sua promoção social. Em época de desmobilização associativista, Araújo foi sempre uma voz activa na defesa da Liga Africana.

A actual sede, construída com o apoio de fundos da administração colonial, foi inaugurada em 1953, época em que o Cónego Manuel das Neves assumia a presidência da Mesa da Assembleia Geral da Liga Nacional Africana. O Cónego Manuel das Neves teve um papel fulcral na luta contra o colonialismo em Angola.

Liceu Vieira Dias, um dos funfadores
do grupo Ngola Ritmos
O seu protagonismo na relação com as autoridades, devido à ligação à Igreja Católica, serviu de farol para os angolanos. E também serviu para amansar as autoridades portuguesas em relação às actividades nacionalistas. "Todas estas estratégias servem de exemplo para a geração que lidera a Liga Africana. Porque a diversidade de origens, de crenças e até de fenótipo, que sempre caracterizaram a organização, foram um garante da nossa resiliência.

Muitas destas decisões foram tomadas em consciência, foram estratégicas para a resistência colonial", conta Carlos Mariano. O período de algum dinamismo social e político e de alguma subalternização das narrativas coloniais, em Luanda, deu origem a dois eventos fundamentais no caminho até à Independência de Angola: o 4 de Fevereiro (assalto às cadeias de Luanda e outras posições militares estratégicas portuguesas na capital) e os acontecimentos de 15 de Março de 1961, com as forças da Frente Nacional de Libertação de Angola- (FNLA) a atacar violentamente fazendeiros portugueses e trabalhadores angolanos, na região cafeícola do Uíge. Depois, bem, depois foi tempo de ferro e fogo. O Cónego Manuel das Neves foi exilado para Portugal, mais precisamente para o Convento do Soutelo, distrito de Braga.

"1961 também é um marco para a Liga Nacional Africana. A adversidade acentuou-se. A direcção então em funções foi suspensa pela administração portuguesa. Muitos foram detidos. De 1961 até 1975 foram-nos impostas uma série de comissões administrativas que lideraram a instituição, agora sob controlo político", lamenta Carlos Mariano. Após a independência, em 1975, deixou de fazer sentido a palavra "nacional". A instituição decidiu regressar à denominação antiga: Liga Africana. A refundação oficial e definitiva ocorreu no dia 20 de Outubro de 1996, após a instituição do multipartidarismo [em 19911. tendo sido seus presidentes, sucessivamente, João Vieira Lopes (1996-2011). António Madaleno (2011-2014) e Carlos Mariano (desde 2014).


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