Mário Pinto de Andrade in memoriam

Jornal de Angola
04.09.11
Se Mário Pinto de Andrade fosse vivo, teria completado no passado dia 31 de Agosto 83 anos. Nascido a 31 de Agosto de 1928, na vila do Golungo Alto, situada numa região do hinterland, cedo veio para Luanda, com dois anos, tendo crescido na Ingombota, em pleno coração de Luanda, ajudado pela madrasta, mãe de Joaquim Pinto de Andrade, outra figura de proa do nacionalismo moderno angolano despoletado no dealbar dos anos 40, 50 e princípios de 60, com o apelo à acção directa através da luta armada.
O pai, Cristino Pinto de Andrade, era antigo funcionário da Fazenda e Contabilidade. O seu progenitor era considerado membro da chamada lumpen-aristocracia sociológica da época. Foi co-fundador da liga Nacional Africana, entre outros, com Gervásio Viana, pai de Gentil Viana e António de Assis Júnior, sendo este último dicionarista da sua língua materna que o interessou no estudo do kimbundu. “O kimbundu era a língua com que eu falava com a madrasta e o criado no quintal”, dizia ele, enquanto o pai censurava tal prática, ambicionando vê-lo subir na vida por via da língua dominante, o português. Preconceitos culturais típicos de uma sociedade colonial!
Oriundo de um estrato social privilegiado, a pequena burguesia africana da época, cuja emergência é assinalável com o “boom” do café, nos finais dos anos 40 e princípios de 50 do século do passado, Mário de Andrade fez os seus estudos primários, secundários e liceais em Luanda, depois de uma crise mística que o levou a frequentar o seminário entre a frequência do ensino preparatório.

Partida para Portugal

Concluído o liceu em 1947-48, com distinção, parte para Portugal. Chegado a Lisboa em 1948, trava conhecimento com o estudante de agronomia Amílcar Cabral, um dos raros africanos que evolui no sistema universitário na metrópole e de ideias mais avançadas. Sendo um leitor omnívoro de ciências sociais, trajado à “dandy”, levado pela mão do seu colega, o futuro engenheiro agrónomo Humberto Machado, irmão de Ilídio Machado, um dos pivots do núcleo duro jacobino do movimento nacionalista que fervilha em Luanda, na segunda metade da década de 50, temos em que a luta nacionalista assume o condão artístico e político, ainda que numa fase de contestação á ordem colonial de forma embrionária, tanto localmente como na diáspora.

Em 1947, surge em Luanda o Ngola Ritmos, liderado pelo maestro e nacionalista Aniceto “Liceu” Vieira Dias, cujas letras das suas músicas fazem apelo à mensagem avassaladora da liberdade, brandindo o martelo contra a ignorância e o medo, denunciando a reedição da escravatura em pleno século XX - o contrato - cantando em kimbundu, clamando a assistência social, sanitária e educacional dos nativos.

O poeta Viriato da Cruz

No ano seguinte, o poeta Viriato da Cruz, conforme é ideia geralmente aceite, lança o Movimento Literário “Vamos Descobrir Angola”, em ordem ao resgate dos “valores nativos destruídos”, para usar uma sua feliz expressão. Viria da Cruz proclama neste seu manifesto cultural e artístico que era preciso resgatar os valores culturais nacionais, inspirados nas tradições seculares, sem sede de exotismos, apoiados na razão e no senso do cultivo das coisas da terra, sem negar a contribuição positiva que vem de fora, questionando também a poética dos seus imediatos predecessores ainda que implicitamente ou mesmo ostensivamente, com base no alumbramento dos cânticos dos modernistas doutra margem do Atlântico, mas, sobretudo, forjado no “serão do menino”, educado na espiritualidade do vasto filão da tradição oral.
Em 1949, é publicada em Paris “L’Antologie de la Poesie Noire et Malgaxe”, de Lelopold Sedar Senghor, na senda dos valores de reafirmação da identidade africana, que plasmada desde os anos 20,30 e 40, em diversas publicações animadas pelos estudantes africanos e da Martinica, evoluindo na capital francesa, nomeadamente o carderno “L’etudiant noir”. David Diop clamava “Deixai a África para os Africanos”, ainda em 1919. São correntes propulsoras do nacionalismo panafricano que se batem pela valorização das massas africanas humilhadas até ao tutano e esbulhadas das suas propriedades agrícolas férteis, com os seus descendentes marginalizados na Europa e na América, sonhando com o retorno às origens.
A geração de Mário de Andrade vive o impacto destas e outras leituras em ordem à emancipação do homem explorado e deserdado da terra, aliás uma das divisas que vai marcar o movimento cultural por si desencadeado com os seus companheiros estudantes e intelectuais africanos, vivendo e estudando em plena cidadela do império, em Lisboa, onde vão fundar o Centro de Estudos Africanos, em Outubro de 1951.

“Reafricanização dos espíritos”

Esta acção marca a ruptura com a alienação mental promovida pelo assimilacionismo colonial, através de uma vasto processo de “Reafricanização dos Espíritos”, com vista à recuperação das suas raízes culturais e à consciencialização das realidades sociológicas e antropológicas dos seus países de origem, campanha simbolizada com um funge ao sábado, além dos acalorados debates longe do jango que ficou na terra-mãe, suscitados pelo palestrante do dia, seminários entremeados com a declamação da poesia de sua lavra geracional.
As actividades deste centro foram abertas com uma conferência proferida pelo poeta e geógrafo santomense Francisco José Vasquez Tenreiro, o primeiro poeta “negritudiano” à escala das cinco colónias portuguesas, com o poemário “Ilha de Nome Santo”, publicado em Lisboa, em 1941, seguidos de diversos ensaios e artigos sobre o valor social, económico e artístico dos seus irmãos de raça em África e nas Américas, na imprensa portuguesa da época, nomeadamente de 1945 a 50, na revista “Seara Nova”.
O Centro de Estudos Africanos era composto por Mário Pinto de Andrade, Francisco José Tenreiro, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Alda do Espírito Santo, Noémia de Sousa, entre outros.

“Expressão Kimbundu”

Os temas apresentados eram seguidos de debate. Mário Pinto de Andrade ocupou-se da Linguística Africana. Aliás, Mário de Andrade animou uma palestra sobre “Expressão Kimbundu”, em Lisboa, em Abril de 1952, no âmbito da reafirmação deste projecto cultural de matriz identitária que “só se pode afirmar num quadro histórico de liberdade”, segundo diria em 1984, em entrevista à “Gazeta de Artes e Letras” da então concorrida revista moçambicana “Tempo”.
Perseguido pela PIDE devido à sua a denodada acção subversiva à ordem cultural e social instaurada, Mário Pinto de Andrade foge para Paris, indo parar ao quadro de Marcelino dos Santos que se havia se exilado um pouco antes. Levado pela mão deste seu correligionário íntimo, vai trabalhar na “Présence Africaine”, capitaneada pelo intelectual senegalês Allioune Diop, que se dedicava à divulgação das realidades políticas, sociais e culturais africanas e de todo o mundo negro, onde assume as funções de secretário de redacção e, depois, de chefe de redacção.
Nesta qualidade de redactor da revista publica diversos artigos analíticos e ensaios, onde desmonta a estrutura sociológica do colonialismo português, nomeadamente a tese lusotropicalista de Gilberto Freyre, bem com dos seus principais corifeus do “bom patrão que aperta a mão do escravo”, nomeadamente Adriano Moreira e Marcelo Caetano.
Nos anos seguintes mantém a sua acção publicista e cultural. A partir daí participa na organização do primeiro e segundo congressos de Escritores e Artistas Negros, organizados pela “Présence Africaine” em Paris, 1956, e em Roma, 1959. Nestes congressos foi notória a ausência do poeta Agostinho Neto, que se encontrava preso em Portugal por razões políticas.

Antologia de poesia

Além em de Mário Pinto de Andrade, entre os escritores e intelectuais angolanos, no primeiro congresso estiveram o reverendo Joaquim Pinto de Andrade e o estudante de direito Manuel Lima, colaborador do jornal “Cultura”. Entre estes dois congressos Mário Pinto de Andrade publica a “Antologia de Poesia Negra de Expressão Portuguesa”, onde reitera igualmente os argumentos esgrimidos na “Présence Africaine” contestando a ordem cultural colonial e exaltando a expressão cultural, literária e plástica dos colonizados das cinco colónias portuguesas, cujo pano de fundo cultural africano é distinto de Portugal, por sinal, o último império colonial varrido da face de África em 1975, e que se gabava extensivo de Minho a Timor.
Tempos de radicalização da vaga nacionalista em África, o movimento independentista cerra fileiras no Gana, Argélia, Camarões e na Guiné-Conakry. Mário Pinto de Andrade anuncia a passagem à “acção directa”, através da Luta Armada de Libertação Nacional, em Dezembro de 1960, o ano das independências em África.
As armas estão acesas nas mãos dos poetas, feitos líderes políticos pela emancipação dos seus povos. O evoluir da conjuntura de então exige outros métodos de acção mais vigorosos e de luta mais audazes: as catanas substituem o verbo dos que profetizaram a mensagem redentora do sol da dignificação do nativo e do rompimento das grilhetas da dominação colonial.
No fundo, estava escrita implacavelmente a crónica anunciada do despertar africano e a premonição pela entoação dos hinos à liberdade, na hora do regresso ao país natal, como cantava Aimé Cesaire, um dos seus principais inspiradores na assumpção da causa africana.
“O meu nacionalismo não é estreito, disse o intelectual emprestado à política, é alargado ao espaço dos cinco países africanos de língua oficial portuguesa”.

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